segunda-feira, 18 de agosto de 2008

Ensaios sobre a normalidade - Timidez

São Paulo, domingo, 20 de julho de 2008

Que vergonha...

CLINICALIZAÇÃO DE SENTIMENTOS COMO A TIMIDEZ BENEFICIA APENAS A INDÚSTRIA FARMACÊUTICA, DIZ CHRISTOPHER LANE EM LIVRO LANÇADO NOS EUA; PARA ELE, CONSUMISMO E DESCRENÇA TAMBÉM CORREM O RISCO DE SEREM VISTOS COMO DOENÇAS

DA REDAÇÃO

Pensar antes de falar tornou-se coisa do século 19. A pressão por agilidade que a competitividade capitalista imprime sobre o homem no trabalho -e, por conseqüência, em todas as esferas de sua vida social- gerou novos conceitos de normalidade, sob os quais a timidez e a introspecção não têm lugar.
Para a psiquiatria contemporânea, trata-se de transtornos mentais.
Isso é o que defende o professor de literatura na Universidade Northwestern (EUA) Christopher Lane. Para ele o abandono da teoria freudiana, em meados do século 20, e o desenvolvimento do mercado de antidepressivos fizeram comportamentos até então vistos como comuns serem tratados como transtornos.
Acostumamo-nos à idéia de que ninguém é normal, mas que medicamentos podem nos levar à sanidade.
Lane, que estudou comparativamente a psicologia contida na literatura vitoriana e a ciência contemporânea em livros como "Hatred and Civility" (Ódio e Civilidade) e "The Burdens of Intimacy" (Fardos da Intimidade), concentrou-se na evolução mais recente da classificação das doenças mentais para escrever seu novo livro, "Shyness" (Timidez, Yale University Press, 272 págs., US$ 27,50, R$ 45).
Ele analisa o desenvolvimento do DSM, sigla para "Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais", classificação norte-americana usada como referência internacional para as ciências médicas. Lá, timidez é o "transtorno de ansiedade". Publicado desde 1952, o DSM já teve quatro versões, com cada vez mais categorias.
Para Lane, a versão de número cinco deve conter doenças novas, como "consumismo excessivo", o que representa um risco em sociedades marcadas pela automedicação e, segundo ele, pelo pacto entre cientistas e indústria farmacêutica.
"Nos últimos anos, pesquisadores chegaram a se recusar a publicar pesquisas porque tinham resultados negativos para a indústria. É um sério conflito de interesses." (EGN)

 

FOLHA - Como define a timidez?
CHRISTOPHER LANE
- Eu a definiria como uma forma de consciência de si, às vezes excessiva, que pode resultar em hesitação, atitude estranha e embaraço. É um traço psicológico bem difundido, existindo em cerca de 50% da população. Não é um transtorno psiquiátrico.
A timidez tende a variar enormemente de acordo com o temperamento, a idade e a situação -pessoas gregárias podem ficar tímidas no primeiro encontro com estranhos, e crianças e adolescentes podem se tornar tímidas em idades de mais autoconsciência.

FOLHA - Resumindo a tese de seu livro: os psiquiatras abandonaram Freud e tomaram nada mais que o DSM em seu lugar para explicar as doenças mentais?
LANE
- É algo nesse sentido.
Tento contar um pouco a história da ansiedade e como pensamos nela.
Até 1980, o DSM usava linguagem psicanalítica sobre ansiedade. Usava-se a expressão "neurose de ansiedade". Os americanos estavam insatisfeitos com o uso da linguagem psicanalítica, apesar de ela continuar em uso na Europa e em países como Brasil e Argentina.
Houve nos EUA um guinada em direção à biomedicina e à neuropsiquiatria, portanto tentou-se definir ansiedade em termos puramente biológicos.
É claro que há componentes biológicos: palpitação, suor nas mãos, falta de ar. Descrevo a saída da abordagem psicológica em favor da biomédica, o que levou à conseqüência de que a solução passou a ser o remédio, ao invés de alguma mudança de consciência ou percepção.
Hoje temos muitas indicações sobre os efeitos colaterais e os problemas quando alguém tenta diminuir a dose, como mudanças súbitas de humor ou pensamento suicida.
Quando Peter Kramer escreveu "Ouvindo o Prozac" [ed. Record], ele pensava nas transformações na sociedade de uma maneira totalmente benigna -escreveu antes de muitas descobertas negativas sobre essa droga.
Hoje, escritores e cineastas são mais conscientes dos riscos das drogas, de que pessoas podem considerar, como parte de suas identidades, tais doenças e as drogas a elas associadas.

FOLHA - Mas na cultura pop persistem piadas ingênuas do tipo "está na hora de tomar seu Prozac"...
LANE
- É porque a indústria foi muito eficiente em limitar a publicidade dos efeitos colaterais dessas drogas. Como são elas que bancam a maioria das pesquisas, são brilhantes em ocultar resultados.
As pessoas acham que vão resolver com drogas problemas que, em 80% dos casos, o placebo resolve com a mesma eficácia. E as drogas têm efeitos colaterais.

FOLHA - Essa atitude do consumidor reflete a mudança cultural que recomenda a postura agressiva do mundo dos negócios?
LANE
- É a pressão para ser extrovertido. Há menos ênfase em introspecção, reflexão, escutar e absorver informações.
Como resultado, a idéia de "normal" mudou muito e se estreitou demais. O ideal de extroversão torna-se uma exigência. E quem não é extrovertido se sente estranho, carente de alguma cura. A indústria deveria aliviar o sofrimento, mas gera um novo sofrer.

FOLHA - O sr. conta a história de sua mãe, que, quando criança, imitava um cavalo quando alguém lhe dirigia a palavra. E escreve que seus avós, como muitos pais fariam, esperaram "pacientemente" que ela aprendesse a se relacionar. Vivemos uma cultura da impaciência?
LANE
- Sim. Nossa expectativa sobre outras pessoas e sobre o que a vida oferece se apressou, Há pressão para competir e produzir, e isso tem alto custo em instabilidade para as pessoas. Por isso, não digo que a ansiedade seja um mito.

FOLHA - A depressão recebeu por parte da indústria o mesmo tratamento que a ansiedade?
LANE
- A depressão tem uma história mais longa, mas recebeu um tratamento semelhante, pois a psicologia ficou de lado em favor da questão de quantidade de substâncias no organismo.

FOLHA - E como a mudança cultural afetou o tratamento dado à depressão?
LANE
- Há livros muito bons, como "The Loss of Sadness" [A Perda da Tristeza, de Allan V. Horwitz e Jerome C. Wakefield], que documentam como o DSM simplificou demais a depressão, especialmente o transtorno bipolar. A publicidade transformou "bipolar" em um termo do dia-a-dia.
Os psiquiatras têm uma concepção estreita de normalidade, portanto criam novas doenças, como aquela para quem briga no trânsito, por exemplo [distúrbio de explosão intermitente]. Não digo que seja normal, mas daí a criarem um transtorno específico mostra aquilo que eles aceitam como emoções humanas.

FOLHA - O sr. estudou em "Ódio e Civilidade" o comportamento anti-social. A misantropia virou doença?
LANE
- É uma ação política classificá-la como doença. No século 19, os misantropos eram valorizados por serem pessoas críticas da sociedade.

FOLHA - Que está estudando no momento?
LANE
- Estudando "passive-aggressive disorder" [transtorno passivo-agressivo].
É interessante notar que a linguagem usada no DSM de 1952 vem do jargão militar, de memorandos da Segunda Guerra. Médicos estavam preocupados porque alguns soldados não seguiam ordens, chamando isso de comportamento passivo-agressivo.
Esses dados foram trabalhados e foi criado o transtorno de personalidade com esse nome.
Em 1980, esse rótulo foi usado para descrever sintomas nestes termos: "Pessoas que têm preguiça, que não querem fazer compras ou lavar a roupa". É uma transformação incrível.
Estou também escrevendo sobre a história da descrença, chamada "Failing Gods" [Deuses que Falham].

FOLHA - A descrença logo vai virar doença?
LANE
- Espero que não, é um fenômeno extremamente útil.
Mas há grande chance de que o consumismo ou a descrença logo sejam rotulados como transtornos mentais, o que seria alarmante.
A dúvida é um estado da mente que seria bom reviver.
No século 19, os vitorianos escreviam muito sobre a dúvida: religiosa, científica, social, filosófica, legal. Hoje há a necessidade de revivê-la.
Podemos conceber o fundamentalismo como o pensamento que não admite dúvida, o que é perigoso porque o mundo é cheio de incerteza. Não aceitá-la produz comportamentos extremos, como as pessoas não mais tolerarem umas às outras.
É um problema generalizado -veja, por exemplo, o fundamentalismo cristão nos EUA.

FOLHA - As crianças precisam da timidez assim como da dúvida?
LANE
- Não digo que precisam, mas não devem se sentir doentes por a sentirem. As pessoas têm excentricidades, isso é parte da humanidade. As pessoas são mais felizes quando podem se expressar como são. Um psiquiatra que não tolera as diferenças é arrogante.

URL: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs2007200803.htm

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