quarta-feira, 16 de julho de 2008

A polícia por dentro

Abaixo, excelente matéria, bem resumida e focada nos problemas da PM fluminense cujos efeitos foram estampados nos noticiários dos últimos dias.

Mensagem
O repórter, Raphael Gomide, foi o mesmo que se infiltrou (prestando concurso) no curso de formação da PM do Rio, e fez reportagem detalhada sobre a experiência. É de arrepiar. Segue abaixo o link para a reportagem (para assinantes da Folha ou do UOL):
 
 
É jornalismo investigativo da melhor espécie. Tenho profunda admiração por esse jornalista. Acho que eu não teria coragem de fazer o mesmo. Com tantos repórteres mortos ou presos mundo afora, os poucos e bons jornalistas investigativos são um orgulho para a profissão.
 
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São Paulo, quarta-feira, 16 de julho de 2008
 
ARTIGO

Falta treinamento e sobra nervosismo

RAPHAEL GOMIDE
DA SUCURSAL DO RIO

"Troca tiros com vagabundo na favela. Ele se rende. Vai prender? Eu vou matar!"
Ouvi esta frase mais de uma vez no curso de Formação de Soldados da Polícia Militar do Rio, que freqüentei por um mês para escrever a reportagem "O Infiltrado - Por dentro da PM" [publicada no caderno Mais! da Folha, no dia 18 de maio]. Argumentei que o procedimento é ilegal, mas recebi como resposta um tapinha no ombro com desprezo. "Se você entrar na PM com essa de "prender", é bom rezar muito! Direitos Humanos é para quem é humano!"
Quando um agente decide que um preso (bandido ou inocente) deve morrer, a pena de morte está em vigor, sem tribunal ou processo legal, e a Constituição deixa de valer. Na rua, à primeira ameaça de perigo, o policial atira no "inimigo". Que pode ser um menino de três anos, como foi João Roberto, morto semana passada, ou um trabalhador assaltado, como Luiz Carlos Soares da Costa, 36, a vítima da noite de segunda.
Em treinamento de agentes brasileiros pela SWAT do Texas (EUA), no Rio Grande do Sul, um integrante do grupo norte-americano contou, para minha surpresa, que em 13 anos de operações de resgate, nunca havia disparado um tiro. "A técnica e a velocidade substituem a violência", afirmou.
Os alunos PMs ouvem repetidas vezes no curso que não se deve disparar a não ser em legítima defesa própria e de terceiros, e que devem fazer "uso moderado da força". Descobrem lá, como eu, que "perseguição" a pessoas em veículo "em atitude suspeita" é errado: deve-se acompanhar o carro e fazer o cerco. Perguntam se devem atirar em quem foge da abordagem e escutam um sonoro "claro que não!" Os comandantes da PM, portanto, não mentem quando afirmam que os recrutas aprendem tudo isso. Então o que acontece?
O problema está no hiato entre a teoria e a prática. Isso começa na precária formação dos PMs, com pouco treinamento prático, principalmente por falta de recursos. Eles são formados com 40 tiros de pistola, 40 de revólver e 40 de fuzil, quando não se conhece arma com menos de 250 disparos.
Os discursos contraditórios na escola -o oficial e o não-oficial- deixam o novo PM cheio de dúvidas. Na hora da ação, falta treinamento e sobra nervosismo. A mentalidade e a ideologia "da rua", então, prevalecem sobre a doutrina do curso de formação.
Causa e efeito disso: a polícia fluminense é a que mais mata e a que mais morre no Brasil. Em 2007, matou 1.330 civis em supostos confrontos. Morreram 151 agentes, 119 na folga, e o restante, 32, em operações. Todas as polícias dos EUA, somadas, mataram 375 pessoas (28% o número do Rio) em 2006.
Morre um policial para cada grupo de 41,6 civis mortos em supostos tiroteios, quatro vezes o índice tolerado mundialmente. Não é necessário ser especialista para identificar a desproporção. A ONU e grupos de direitos humanos vêem nos números indícios de execuções.
No curso da PM do Rio há clara preocupação de condenar e combater a corrupção interna. É um passo positivo. A violência policial letal, porém, permanece tolerada e até estimulada no discurso semi-oficial, nas conversas com instrutores. "Vocês vão aprender na rua: deu tiro pelas costas, pega a arma, põe na mão do cara, dá um tirinho e alega legítima defesa. Talvez eu fizesse isso no calor da emoção. Mas isso é na rua, aqui não é lugar para aprender isso", disse um instrutor.
Quando o governador do Estado diz a seus comandados que a política é de "confronto", ainda que o secretário de Segurança afirme que é de "desarmamento", fica evidente que não há interesse em reduzir as mortes de civis, bandidos ou não. Sem treinamento, mudança de mentalidade e um urgente programa de redução da letalidade, o Rio continuará a bater sucessivos recordes macabros.

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