São Paulo, segunda-feira, 23 de março de 2009
Ciência viciada
JOSÉ MARIA E SILVA
Na prática, o uso de drogas já foi legalizado no país; a ciência de especialistas é mais alucinada do que o delírio de um viciado |
EM RECENTE defesa da descriminalização da maconha, Fernando Henrique Cardoso afirmou que o debate sobre a legalização das drogas enfrenta um tabu que precisa ser quebrado. Trata-se de miragem do ex-presidente, já que a descriminalização das drogas -incluindo a defesa explícita da legalização da maconha- não sai da pauta da imprensa e das universidades, permeando até os "temas transversais" do MEC, impostos às crianças nas escolas. Na prática, o uso de drogas já foi legalizado no país, com a bênção de tucanos e petistas -ideologicamente ecumênicos quando se trata de subverter costumes.
A lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006, que institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas, aboliu qualquer punição para os usuários. A pena máxima é a prestação de serviços à comunidade, que, se não for cumprida, acarreta simples "admoestação" por parte do juiz, até que o crime prescreva. E quem sofre as consequências é o bolso do contribuinte. Para a nova lei, consumir drogas é um direito inalienável do usuário, e curar sua dependência, um dever incondicional do Estado.
Essa tendência já havia sido antecipada pela Assembleia Legislativa de São Paulo, que, em 9 de fevereiro de 2006, derrubou veto do governador do Estado e, num arroubo de independência não muito comum no Parlamento brasileiro, promulgou, por decreto legislativo, a lei estadual nº 12.258, que confere privilégios aos usuários de drogas sem lhes impor nenhum dever. Essas leis nasceram de uma tese hegemônica nos meios acadêmicos: a política de redução de danos -eufemismo com que intelectuais universitários disfarçam sua apologia ao uso de drogas.
O brasileiro nem sonha, mas existe até a "Declaração dos Direitos dos Usuários de Drogas", que, obviamente, não foi feita por uma Constituinte de usuários, mas por acadêmicos financiados pelo contribuinte. Subscrita pelo Cebrid (Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas), da Universidade Federal de São Paulo, a declaração finge-se arauto da ciência de ponta, mas não passa de entulho ideológico do Maio de 68. Nela se alicerçam a nova lei sobre drogas e as políticas do MEC e do Ministério da Saúde na área.
Professores universitários, a quem cabe a educação da juventude, proclamam, na referida declaração, o seguinte mandamento: "Conclamamos as organizações não governamentais e governamentais a incluir usuários de drogas em seus conselhos, gerências e direções". Ou seja, as universidades estão defendendo cotas para drogados nas mesas diretoras do Congresso, nos gabinetes ministeriais e nas cortes de Justiça. Deve ser por isso que os autores da de- claração condenam, veementemente, o exame antidoping.
Mas, enquanto não chega o mundo sonhado por essa espécie de "Manifesto Consumista" dos acadêmicos (versão lisérgica do "Manifesto Comunista" de Marx), a deputada Cida Diogo (PT-RJ), apoiada por Rita Camata (PMDB-ES), contenta-se em impor ao mundo real dos usuários do SUS os privilégios dos usuários de drogas. Cida Diogo é autora de projeto de lei que obriga o SUS a dar a eles, entre outros insumos, agulhas e seringas descartáveis. A expressão "outros insumos" abre brecha para que o SUS distribua a própria droga, como a maconha, usada como alternativa de redução de danos para viciados em crack. O projeto está sendo aprovado sem passar pelo plenário da Câmara, como se o luxo da distribuição de seringas para viciados não merecesse debate diante da miséria da falta de medicamentos para crianças nos postos de saúde.
Mais grave é que a atuação dos especialistas encarregados da redução de danos oscila entre a incapacidade e a inconsequência. O próprio Ministério da Saúde, em um texto sobre álcool e drogas recomendado em seu site para crianças de 12 anos, mistura vulgaridade, lascívia e imprecisão, ao comparar a "fissura" proporcionada pelo crack ao prazer do orgasmo -aguçando dupla e criminosamente a curiosidade das crianças. E ainda nega, taxativamente, que a cocaína produza tolerância e síndrome de abstinência, numa indisfarçável apologia da droga para menores, contrariando a lei e a ciência.
Eis, portanto, a danosa política de redução de danos. Ela se alicerça na crença pueril de que o drogado -useiro e vezeiro em escarnecer da lei, da pátria e da família- vai obedecer feito criança as recomendações dos engenheiros sociais. Ainda que quisesse fazê-lo, de nada adiantaria. A "Declaração dos Direitos dos Usuários de Drogas" é uma prova de que a ciência de muitos especialistas é mais alucinada do que delírio de viciado.
JOSÉ MARIA E SILVA, 45, jornalista, é mestre em sociologia pela Universidade Federal de Goiás, com dissertação sobre violência nas escolas.
Esclareço de antemão que nunca usei drogas ilícitas, nem pretendo usá-las se um dia forem liberadas. Também nunca fumei tabaco, e meu consumo anual de álcool se resume a uma taça de sidra no réveillon (às vezes, nem isso). Ainda assim, achei um delírio os argumentos apresentados por José Maria e Silva contra a política de "redução de danos".
É da liberal (no Brasil, "conservadora") revista inglesa The Economist, e não de narco-marxistas, a defesa mais enfática da liberalização das drogas ilícitas. Segundo a revista, décadas de "guerra às drogas" não conseguiram nem reduzir o consumo nem aumentar o preço das drogas (dois de seus principais objetivos), e ainda ajudou a alimentar o crime organizado, que aterroriza não só pessoas como nações inteiras (vide México). Mostra ainda o semanário britânico que o consumo de cocaína por jovens nos EUA e na Inglaterra é mais de cinco vezes maior do que nos Países Baixos, famosos por liberar a maconha em determinados estabelecimentos, nos quais o tabaco é proibido.
Por último, por uma questão de honestidade jornalística, segue o mesmo parágrafo do texto do Ministério da Saúde que relaciona o prazer do crack a um orgasmo: "num tempo um pouco maior de uso ele perde todas as noções básicas de higiene ficando com um aspecto deplorável". Se a referência a "orgasmo" não for suficiente para levar uma criança de 12 anos a "pipar" uma pedra de crack, "aspecto deplorável" certamente a fará, não?
Fabio Storino
São Paulo, SP
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