domingo, 27 de fevereiro de 2011

Iconoclasias: Homeopatia

As conclusões foram desfavoráveis para a homeopatia: seus resultados seriam efeitos placebo. A Lancet ironizou: "Quanto mais diluída se torna a evidência em favor da homeopatia, maior sua popularidade".

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Folha de S. Paulo | 29/8/2010

CIÊNCIA

A medicina das paixões

Homeopatia: 200 anos de polêmica


RESUMO
Estabelecida há dois séculos, a homeopatia segue controversa, conquistando pacientes em busca de mais diálogo com médicos, mas ainda sem comprovar sua eficácia em testes científicos sistemáticos. Sob ataque de cientistas, periódicos e autoridades, a doutrina tem o apoio da OMS e de governos como o dos EUA e o do Brasil.

MARCELO LEITE
CLAUDIA COLLUCCI

ilustração ANA SARIO

A doutrina médica da homeopatia defende, como sugerem as raízes gregas do nome, que a semelhança ("homeo") entre efeitos ("pathos") de uma doença e os de uma droga bastam para elegê-la como medicamento.
Se ingerir chumbo paralisa os músculos e pode levar à morte, também poderia ser um tratamento de paralisias similares. Tido como uma lei da natureza há mais de 200 anos, o princípio se encontra sob fogo cerrado da medicina convencional.
A diferença entre veneno e remédio, para homeopatas, está na dose. Em quantidades mínimas, não só o efeito desaparece como troca de sinal, por assim dizer: diluída, a substância se tornaria capaz de despertar uma ação regeneradora do organismo. Quanto maior a diluição, mais potente seria o medicamento homeopático.

DEBATE APAIXONADO
O princípio da semelhança já é difícil de aceitar para a ciência experimental, núcleo da medicina baseada em evidências, que almeja proscrever a homeopatia. Somado ao da diluição radical, que resulta em remédios compostos só de água, configura-se como charlatanismo aos olhos do pesquisador tradicional. No Reino Unido, o debate apaixonado chegou a ponto de questionar se o governo deve continuar pagando tratamentos e pesquisas sem base científica.
Rubens Dolce Filho, presidente da Associação Paulista de Homeopatia e professor na Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), exerce tanto a alopatia como a homeopatia e não vê incompatibilidade. "Se a homeopatia fosse uma porcaria, já teria acabado 200 anos atrás. Eu não sou louco." Para ele, a homeopatia tem suas limitações, mas não é uma fraude.
"A homeopatia está entre os piores exemplos de medicina baseada na fé", contestam Michael Baum e Edzard Ernst na edição de novembro do periódico "The American Journal of Medicine". Médico e pesquisador alemão, Ernst trabalhou com homeopatia em Viena; hoje professor de medicina complementar na Universidade de Exeter e Plymouth (Reino Unido), tornou-se um de seus mais ácidos críticos.
"Esses axiomas não estão só em desalinho com fatos científicos, mas também em direta oposição a eles", diz o artigo. "Devemos manter a mente aberta para astrologia, motos-perpétuos, alquimia, abdução por aliens e visões de Elvis Presley? Não, e temos a satisfação de admitir que nossas mentes se fecharam para a homeopatia da mesma maneira."
São palavras incomuns numa publicação médica, ainda que outra prestigiada revista, "Lancet", tivesse decretado a morte da homeopatia quatro anos antes. Ernst disse coisas semelhantes num depoimento ao Parlamento britânico. A Câmara dos Comuns lançou em 2009 uma ofensiva contra a homeopatia por meio de seu Comitê de Ciência e Tecnologia. A conclusão do relatório final, publicado na internet em fevereiro, não poderia ser mais severo:
"Ao oferecer a homeopatia no NHS [Serviço Nacional de Saúde] e ao permitir que a MHRA [Agência Reguladora de Remédios e Produtos de Saúde] licencie produtos que depois aparecem nas prateleiras das farmácias, o governo corre o risco de endossar a homeopatia como sistema médico eficaz. [...] A homeopatia não deve ser financiada pelo NHS, e a MHRA deveria parar de licenciar produtos homeopáticos."
A Sociedade de Homeopatas do Reino Unido reagiu acidamente à comissão. Acusou-a de ignorar as evidências apresentadas, como um total de 74 estudos sobre a eficácia da homeopatia, 63 deles positivos para a terapêutica alternativa. O relatório parlamentar, por seu turno, acusa os homeopatas de manipulação da literatura médica, privilegiando estudos positivos para confundir o público.
"Perguntamo-nos se algum tipo de evidência demoveria médicos homeopatas de sua autoilusão", afirmam Baum e Ernst no comentário em que fecham as mentes para a doutrina, "e os desafiamos a projetar um ensaio metodologicamente sólido que, se negativo, os convença a abandonar o ramo."
"A homeopatia permaneceu como a esfinge entre os sistemas contemporâneos de medicina", já havia constatado anos antes o filósofo alemão Peter Sloterdijk (pronuncia-se "sloterdáic"), no discurso que proferiu em 1996, por ocasião do bicentenário da homeopatia. "Um bloco errático no meio da civilização técnica, ao mesmo tempo plausível e incrível, enigmático e eficaz, uma efígie do ontem e do amanhã."

REPERTORIZAÇÃO
O consultório de Marcus Zulian Teixeira, 52, fica no bairro paulistano de Pinheiros, a um quarteirão da Faculdade de Medicina da USP. É lá que ele se formou e hoje pesquisa e dá aulas. Exíguo e funcional, o espaço sugere tratar-se de um médico de razoável sucesso, ainda que não enriquecido.
Iniciada uma consulta, a sucessão de perguntas parece não ter fim. O paciente, no sentido mais literal da palavra, terá de dizer de que lado dorme, como anda o apetite, se tem sonolências ou se é calorento. E a dor de cabeça que o traz ali, aparece mais do lado direito ou esquerdo?
A lista crescente de sintomas alimenta um programa chamado "repertório digital de homeopatia". O computador reage a ela relacionando medicamentos adequados para cada condição, de arnica a zinco. Para a dor de cabeça destra, surgem 106 nomes na tela. Para calores, 170. O sono sobre o lado direito do corpo está associado com sete substâncias, entre elas a camomila.
O processo, conhecido como "repertorização", segue em frente, hierarquizando os sintomas segundo a intensidade, até que o homeopata se fixe no remédio único para tratar o indivíduo à sua frente -e não a doença específica que o levou ao consultório. É o início de uma terapia que pode consumir semanas, meses.
Teixeira está entre os homeopatas que escolheram lutar com as armas da medicina baseada em evidências. Depois de formar-se em agronomia e enveredar pela agricultura biodinâmica, foi estudar medicina, aos 27 anos, para tornar-se homeopata. Por seis anos frequentou a Faculdade de Medicina da USP sem mencionar a ninguém sua intenção.
Quase duas décadas depois, ministra lá a disciplina de graduação fundamentos da homeopatia. Pesquisou durante cinco anos a rinite alérgica de 54 pacientes para delimitar o efeito placebo e separá-lo da contribuição terapêutica específica de medicamentos homeopáticos, estudo que defendeu em 2009 como tese de doutorado e publicou em artigo no periódico especializado "Homeopathy".
Teixeira afirma ser possível desenvolver metodologias para realizar estudos que respeitem o princípio da individualização, ou seja, um remédio para cada paciente e seu quadro peculiar de sintomas. Isso não ocorre em testes convencionais de medicamentos, alega, pois estes têm por alvo um tratamento único em comparação com outro. Seria preciso, além disso, um estudo com a participação de muitos centros de pesquisa para conseguir recrutar uma amostra grande de pacientes. O custo subiria para a casa dos milhões de dólares, inviável para o setor marginal da homeopatia.

PLACEBO
A homeopatia tem sim alguma eficácia, como qualquer medicamento, inócuo ou não para determinada doença, que seja testado em seres humanos. Mesmo que tomem apenas pílulas de farinha, após cair no grupo de controle de um teste clínico, algumas pessoas verão sua saúde melhorar, mostram inúmeros estudos, por acreditarem estar tomando um remédio eficaz. Mas não se obteve consenso sobre o fulcro da questão -se homeopatia ocasiona algo mais que o efeito placebo.
Se for só isso, placebo, a terapia se torna eticamente indefensável, pois prescreveria dose cavalar de logro na relação médico-paciente. Pois é justamente uma relação melhor entre eles que muitas pessoas parecem buscar na homeopatia, sucesso de público há séculos.
O alívio oferecido pela medicina complementar e alternativa, que inclui homeopatia e acupuntura, compõe desde 2006 o arsenal curativo reconhecido pelo Sistema Único de Saúde (SUS), com sua Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares, formulada pelo Ministério da Saúde em acordo com diretrizes da Organização Mundial de Saúde (OMS).
Em 2009, realizaram-se 326.379 consultas homeopáticas pelo SUS. O custeio da homeopatia mais que quintuplicou numa década, atingindo R$ 3,2 milhões no ano passado, com a distribuição de medicamentos a partir de 2006. Estima-se que existam no Brasil cerca de 15 mil homeopatas, 4,4% dos 340 mil médicos. No SUS, a parcela é ainda menor: 535, ou 0,2% dos 280 mil profissionais.
Nos EUA, segundo a OMS, 2,5 milhões de pessoas recorrem à homeopatia, com gasto equivalente a R$ 5 bilhões anuais. Valor similar se atribui ao mercado mundial de medicamentos homeopáticos, que tem metade da demanda na Europa (sobretudo na Alemanha e na França) e o restante dividido principalmente por EUA e Índia.
A Índia tem 400 mil homeopatas e 307 hospitais especializados nela. Na antiga metrópole, Reino Unido, restam quatro hospitais (um foi fechado em 2009). A homeopatia pode estar na mira do Parlamento, mas é a preferida da família real -príncipe Charles à frente.

ARTES DA CURA
Em 2010, completam-se 200 anos da publicação do "Organon da Arte de Curar", obra do alemão Samuel Hahnemann (1755-1843) que estabeleceu a homeopatia. No ano que vem será festejado o bicentenário de sua monumental "Materia Medica Pura", que homeopatas cuidam de citar pelo título em latim, sem os acentos. Os primeiros artigos de Hahnemann sobre homeopatia, porém, datam de 1796.
Mesmo numa época em que a medicina convencional envenenava e sangrava pacientes, a implausibilidade dos princípios homeopáticos já chocava. Em 1842, um ano antes da morte de Hahnemann e dois após a introdução da homeopatia no Brasil, sua doutrina já era ridicularizada pelo médico e escritor americano Oliver Wendell Holmes (1809-94, pai de um célebre juiz de mesmo nome na Suprema Corte).
O médico proferiu duas conferências na Sociedade Bostoniana para Difusão do Conhecimento Útil, reunidas sob o título "Homeopatia e seus Delírios Afins". A objeção principal se voltava contra a doutrina -depois abandonada pelos homeopatas- da "psora", algo como uma coceira primordial que estaria na origem de sete oitavos de todas as doenças crônicas.
"Eu não me envolverei com essa excrescência [...]; o tempo é muito precioso, e a safra de extravagâncias vivas pesa demais sobre minha foice para que eu venha a cegá-la com palha e restolho", disparou Holmes no fecho da catilinária.

URTICÁRIA
A "psora" parou de incomodar, mas o princípio da similitude continua causando urticária, 200 anos depois dos golpes de foice do médico americano. Teses extraordinárias, diz-se no mundo da ciência, exigem provas extraordinárias. Os fatos em apoio à tese da semelhança, contudo, prosseguem esparsos e longe de formar consenso.
O mesmo se pode dizer do princípio da dinamização (diluições sucessivas), que sobrevive como alvo preferencial dos inimigos da homeopatia no reino da ciência estabelecida. A comissão parlamentar britânica se baseou em estudos que, na sua interpretação, descartam o poder curativo dos medicamentos homeopáticos ultradiluídos. Mostrou-se tão segura que recomendou a interrupção até das pesquisas sobre a eficácia da homeopatia.
No Brasil, o Ministério da Saúde lançará em 2011 uma linha de financiamento de pesquisa sobre homeopáticos, mas não revela o montante. "É muito difícil conseguir financiamento dos órgãos de fomento para as práticas não convencionais", diz Carmem Lucia De Simioni, coordenadora de Políticas Integrativas do ministério. Segundo Simioni, não se cogita rever o apoio à homeopatia, como no Reino Unido: "Construímos uma política numa base muito sólida, com muita responsabilidade, ouvindo todos os parceiros, nos pautando pela OMS".
Os homeopatas discordam da interpretação da literatura médica pela comissão parlamentar britânica, mas concordam que ensaios clínicos constituem o padrão de ouro da evidência biomédica para chancelar terapias. Há dois tipos de estudos nessa linha de investigação.

RCT
O tipo mais básico inclui ensaios randomizados e controlados, conhecidos pela sigla em inglês RCT. Neles, vários pacientes recrutados são distribuídos de modo aleatório (randomizado) em grupos que recebem o medicamento em teste, um composto com aparência similar desprovido da substância em causa (placebo), ou então outro remédio que se queira confrontar com o primeiro.
RCTs por vezes conduzem a resultados de alcance estatístico limitado, por usar pequenas amostras da população que um centro de pesquisa recruta sozinho. A solução é aumentar a amostra reunindo vários centros que sigam a mesma metodologia: são os RCTs "multicêntricos", que chegam a custar milhões de dólares.
Outra saída é aumentar a amostra agrupando ensaios independentes sobre uma mesma terapia, com metodologias semelhantes o bastante para permitir a somatória dos resultados. O estratagema dá origem ao segundo tipo de RCT, conhecido como estudos de meta-análise, a forma mais sólida de evidência em medicina.

META-ANÁLISE
No centro da querela da homeopatia está uma meta-análise publicada em 2005 na revista "Lancet" pelo grupo de pesquisa suíço-britânico de Aijing Shang e Matthias Egger. Eles reuniram resultados de 110 estudos de homeopatia e medicamentos convencionais, com amostras variando entre 10 e 1.573 pacientes.
As conclusões foram desfavoráveis para a homeopatia: seus resultados clínicos não seriam mais que efeitos placebo. Em editorial, a "Lancet" permitiu-se, até, alguma ironia: "Quanto mais diluída se torna a evidência em favor da homeopatia, maior parece a sua popularidade".
Os homeopatas destacam duas críticas aos métodos usados na meta-análise de Shang e Egger. A primeira veio menos de um mês depois, na própria "Lancet", e partiu de Klaus Linde e Wayne Jonas, autores de análise similar publicada em 1997. Mesmo concordando que "a homeopatia é altamente improvável", eles argumentam que o artigo não fornece base sólida para a conclusão sobre o efeito placebo.
Objeções similares foram divulgadas pelo periódico "Journal of Clinical Epidemiology" em 2008. O artigo de R. Lüdtke e A.L.B. Rutten conclui que, por força da alta heterogeneidade entre os ensaios, os resultados e conclusões de Shang são menos nítidos do que o apresentado.
No intuito de reforçar a base factual da doutrina, os homeopatas buscam apoio em todo fato e teoria que julguem confirmar sua convicção. Teixeira, por exemplo, tem à mão extensa bibliografia na área de imunologia, biofísica e farmacologia.
Fazem sucesso entre os adeptos estudos sobre a "memória da água", candidata a explicar a potência de tinturas ultradiluídas. São trabalhos polêmicos, como dois do Nobel de Medicina Luc Montagnier publicados em 2009 num obscuro periódico de Hong Kong, embora o descobridor do vírus da Aids nem mencione neles a homeopatia.

VESTÍGIO ROMÂNTICO
Para o filósofo Sloterdijk, o fascínio da homeopatia deriva de um vestígio romântico, a noção de que tudo no mundo é eloquente. A natureza fala por meio do corpo doente, mas numa língua que ele não entende mais.
Desse ângulo, os sintomas são signos que remetem não a entidades ideais (moléstias), mas a outras coisas do mundo: substâncias químicas, dotadas de desmesurada força vital. O intérprete homeopata traduz esse discurso somático e restabelece, pelo diálogo, o equilíbrio perdido.
Soa fantástico, mas talvez por isso seja bem recebido por tantas pessoas, em especial as que padecem de moléstias crônicas. A homeopatia lhes dá coisas que as tecnoterapias baseadas em evidência se tornaram incapazes de oferecer, como a atenção do médico ou a perspectiva de superar o estranhamento com o próprio corpo. Desse ponto de vista, a implausível sobrevivência da homeopatia seria o sintoma renitente de uma crise na própria medicina convencional.
Até os críticos da homeopatia podem concordar com esse diagnóstico. "Tenho enfatizado com frequência que a medicina 'mainstream' tem muito a aprender sobre empatia, dedicação, tempo para ouvir etc.", concede Edzard Ernst, o alemão de cabeça fechada, que no entanto ressalva: "A boa medicina deve fiar-se tanto na arte quanto na ciência médica, não trocar uma pela outra".
As terapias mais arcanas, para Sloterdijk, terminam por encontrar-se com as promessas genômicas de uma era de medicina individual e precisa. Ele antevê uma época na qual os pacientes se entenderão cada vez mais como biogerentes de si próprios e crescerão como pilotos de seus sistemas imunes: "Daqui vislumbramos o futuro de uma medicina que lê e escreve os signos do vivente nas camadas hoje ainda não pesquisadas do texto da natureza".

(Fonte)

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