quarta-feira, 22 de julho de 2009

Uma doença coletiva

Os defensores da ética na atividade pública pregam para os convertidos. Os outros formam na legião dos desesperançados ou dos indiferentes.

Bastante cínico e realista (como eu). Bárbaro, o artigo.

Mais gostoso ainda foi ter falado sobre isso hoje durante o almoço, antes de tê-lo lido.

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Uma doença coletiva

Luiz Weis  |  O ESTADO DE S.PAULO, 22 DE JULHO DE 2009

    É confortador imaginar que, nas suas proporções conhecidas, a corrupção um dia se tornará disfuncional para o desenvolvimento brasileiro. Seria uma questão de incompatibilidade. O argumento é que, a partir de um certo patamar, por força da própria evolução de suas relações com a esfera pública, as forças do sistema econômico finalmente pressionariam os governos a reduzir a dimensões toleráveis o espaço que neles ocupam o patrimonialismo, a patronagem e o coronelato político, remanescentes de um País que teria caducado.

    Mas não convém apostar nisso o último centavo. Comparando: o mundo já mostrou que a economia de mercado, ou qualquer outra que tentou substituí-la, não é nem a irmã nem a parteira da liberdade e da democracia, salvo quando o bloqueio à circulação de ideias trava o crescimento, por inibir a inovação científica e tecnológica – o que foi o caso da União Soviética, mas não é, longe disso, o caso da China.

    Do mesmo modo, a economia é perfeitamente capaz de avançar num cenário de práticas políticas arcaicas – desde que não se voltem contra ela. Do contrário, a corrupção entranhada no seu sistema político teria impedido o Japão de ser a segunda maior potência econômica do globo. (A esbórnia também corre solta na China, sem efeitos palpáveis sobre a sua fabulosa expansão.)

    Claro que a corrupção produz, no acumulado, um incalculável desperdício de recursos. A captura dos Poderes do Estado pelas caciquias políticas e seus parceiros na sociedade, assim como a infinidade de pedágios que os agentes econômicos pagam às máfias burocráticas para prosperar – em determinados setores, um dado central da competição entre as empresas –, cria um aluvião de gastos que de outro modo teriam um destino socialmente mais justo.

    Só que o fato de tudo sair mais caro do que precisaria, décadas depois de décadas, não impediu que o País crescesse nem impedirá que continue a crescer. O perverso repasse dos custos, de quem pode mais para quem pode menos, garante a perpetuação do processo. A qualidade dos serviços públicos dos quais a maioria da população depende seria naturalmente outra, mas desde quando isso foi um breve contra a corrupção? Para a imensa constelação de interesses que conhecem o caminho das pedras, dá no mesmo.

    Ainda agora, na passagem dos 15 anos do Plano Real, uma profusão de comentaristas destacou que a estabilização monetária criou condições para mudanças institucionais que provocaram reações em cadeia na gestão macroeconômica e no manejo das finanças públicas. Mas é como se nada disso tivesse acontecido, a julgar pela persistência dos velhos costumes políticos. Eles eram coerentes com o Brasil pré-Real, mas só em teoria se tornaram incoerentes com o pós. O poder oligárquico opera com as metas, os métodos – e em geral com os resultados – de sempre.

    A sequência dos escândalos no Senado mostrou como vai bem, obrigado, a forma de proceder dos políticos que espelha, com desenvoltura típica, a disseminada "cultura da transgressão" de que fala o historiador Boris Fausto. Nela se escora a impunidade que do lado de cá tanto se condena, mas não a ponto de desencadear uma contestação efetiva ao seu reinado. Provavelmente porque, embora em muitos aspectos o Brasil se tenha renovado, a complacência como ilícito segue inabalada.

    Em parte, pelo cálculo de conveniências – caso do presidente Lula quando coloca o senador José Sarney sob a proteção do governo. Em parte, pela resignação dos escandalizados. Esse é um ponto que não pode ser excessivamente sublinhado. Quaisquer que sejam as suas modalidades, a corrupção se mantém porque o País pode ir para a frente coexistindo com ela e porque a rotina da privatização do patrimônio comum não é desafiada por valores amplamente compartilhados em sentido contrário.

    Os defensores da ética na atividade pública pregam para os convertidos. Os outros formam na legião dos desesperançados ou dos indiferentes. Os novos incluídos que se beneficiaram da combinação singular do recente ciclo de prosperidade com os ousados programas sociais de Lula não estão nem aí para a lambança dos políticos e dos operadores do aparelho de Estado. E por que haveriam de estar? A melhora de seu padrão de vida não dependeu da diminuição dos níveis de corrupção nas instituições lá de cima.

    Instituições – para quantos brasileiros isso realmente importa? Para a economia, sem dúvida. Afinal, embora varadas de fraudes, o seu funcionamento e sua estabilidade são essenciais para a segurança dos empreendimentos. Para outros setores vocais da sociedade, nem o receio de que a sua erosão as mergulhe numa crise de efeitos insuspeitados os leva a articular um projeto para o seu resgate preventivo.

    É um panorama paradoxal. Este é o país em que o recém-eleito presidente da UNE diz, numa boa, que "émais do que legítimo que o governo financie o movimento estudantil" – uma forma de corrupção como qualquer outra. Mas é também o país em que, segundo uma consulta que recebeu nada menos que 500 mil respostas, a maioria falou espontaneamente em valores como ética e honestidade ao responder à pergunta: "O que deve mudar no Brasil para sua vida melhorar de verdade?"

   As pessoas podem fazer a coisa errada, mas pelo menos sabem qual é a coisa certa. Ou, como observou a senadora Marina Silva, em artigo na Folha de S.Paulo de segunda-feira, comentando a consulta que dará o mote para o próximo relatório das Nações Unidas sobre desenvolvimento humano no Brasil: "Não se trata de colocar no pedestal a sociedade supostamente virtuosa contra um território vicioso, que seria o da política. Há enormes contradições entre o que se entende ser o correto e aquilo que de fato se pratica."

    Essa contradição é agravada pelos "sinais emanados das instituições", diz ela. "É um processo que acaba virando doença coletiva." É também um círculo vicioso que nada interrompe.

Luiz Weis é jornalista.

URL: http://digital.estadao.com.br/download/pdf/2009/07/22/A2.pdf

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Para quem chegou até aqui, um brinde: o link para o debate que fizemos em agosto de 2007 sobre o tema da "cultura das transgressões no Brasil" (com acesso aos vídeos das palestras) e para o livro homônimo que lançamos logo depois.

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