quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Capitalismo às avessas

Não é o máximo quando o governo dá bilhões de reais às montadoras venderem suas SUVs bebedoras de gasolina para a classe alta poder continuar comprando seus veículos?

Cada vez que vejo a propaganda da Hyundai na tevê anunciando a ajuda do governo para comprar os modelos Tucson, Veracruz, Santa Fe etc., me convenço mais de que vivemos numa fase aguda de crony capitalism ("capitalismo de compadres"?).

O imposto que o seu João da Silva paga no feijão que compra com dificuldade está ajudando a Patrícia de Albuquerque Sampaio a comprar seu tão sonhado Santa Fe.

Mais um exemplo para reforçar meu argumento de que importa menos quem paga quanto de imposto (sou um defensor do "flat tax"), e muito mais como o governo redistribui essa receita em serviços para a população. Se ele gastar com os mais ricos, de pouco adianta os esforços de "justiça tributária" no lado da receita. Além de gerar imensas distorções e custos desnecessários de administração tributária, o papel redistributivo do governo não é cumprido -- fica-se na mesma.

Já que o governo está sendo um parceiro dos capitalistas, vamos fazer direito, então. Querem meu dinheiro? Estas são minhas condições:

1) Ele será dado na forma de cash-back na compra de veículos voltados para as classes mais baixas. Nada de "Robin Hood às avessas", nem de dinheiro na conta bancária das montadoras! Elas devem ter um incentivo para realizar a venda, e não apenas aliviar sua posição financeira por meio de subsídios públicos

2) A ênfase é no aumento da frota das cidades já saturadas de veículos, ou na renovação da frota, para diminuir a poluição e os transtornos causados por uma frota velha? Se é a última, então nós daremos o cash-back apenas na troca, não na venda nova. Essa estratégia pode ser diferente nas metrópoles e nas cidades menores, pelas razões recém mencionadas

3) Que tal uma cláusula ambiental? Cash-back apenas para a compra de veículos com motor híbrido (incluindo álcool e/ou gás natural). E que tal incentivar a compra de veículos do tipo plug-in, que funcionam com eletricidade? Faz ainda mais sentido no Brasil do que nos EUA, já que nossa matriz elétrica é uma das mais limpas. Nos EUA, o Toyota Prius já vende mais unidades do que o beberrão Ford Explorer

Mas nada disso é pensar ouside the box. Isso seria, em primeiro lugar, o que queremos resolver com a ajuda governamental. Queremos que as empresas continuem funcionando tradicionalmente? Se não tivesse havido a retração do mercado e o mesmo dinheiro público (R$ 4 bilhões do bolso dos paulistas) tivesse sido usado para financiar a ampliação do metrô ou --se os governantes tivessem um melhor senso de custo-benefício-- a melhora dos ônibus, as pessoas não iriam trocar o transporte individual pelo público? Assim, o setor automotivo não se retraria de qualquer maneira?

Sendo assim, ou o governo cria uma lei estabelecendo que cada real investido em transporte público deve ser compensando por igual montante distribuído às montadoras, ou entendamos que o futuro das metrópoles brasileiras não pode ser via meios individuais de transporte.

Poderíamos usar esse momento como "janela de oportunidade" para repensar a mobilidade urbana.

Mas não! Serra, enterrando de vez a esperança de que ainda houvesse na política brasileira algum grande estadista, à altura de Mario Covas e de Fernando Henrique Cardoso --o primeiro foi vencido pelo câncer, e o segundo já está fora das disputas eleitorais--, preferiu agradar as montadoras!

Enquanto no Brasil a política me deixa frustrado, nos EUA minhas esperanças se renovam: num caso clássico de "vida imita a arte", The West Wing vai sucessivamente se tornando realidade.

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