Uma descrição secular da Madona Sistina, de Rafael:
Creio que esta Madona é a expressão mais ateísta possível da vida, do que é humano, sem participação divina.
[…]
Aquilo que é humano no homem vai ao encontro do seu destino, e em cada época o destino é peculiar, é distinto do que foi para a época precedente. O que esses diversos destinos têm em comum é o fato de serem todos igualmente difíceis.
Mas o que é humano no homem continua a existir, mesmo quando o pregaram numa cruz ou o torturaram numa prisão.
Isso que é humano no homem continua a viver nos abrigos de pedra, no frio de 50 graus abaixo de zero, nos acampamentos de lenhadores na taiga, nas trincheiras alagadas de Przemysl e de Verdun. Continua a viver na existência monótona dos empregados de escritório, na miséria das lavadeiras e das mulheres da limpeza, na labuta sem alegria dos operários de fábrica, na luta vã contra a necessidade, até a exaustão.
A Madona com o filho nos braços é o que no homem existe de humano, e nisso reside a sua imortalidade.
Olhando a Madona Sistina, nossa época toma consciência do próprio destino. Cada época contempla esta mulher que carrega o filho nos braços, e entre os homens de diferentes gerações, de povos, raças e tempos diversos nasce uma fraternidade que é terna, comovente e dolorosa. O homem toma consciência de si, da cruz que deve carregar, e de súbito compreende o elo milagroso que une todas as épocas, a ligação entre o que vive agora e tudo o que jamais viveu e viverá.
Na segunda parte desse maravilhoso texto, Vassíli Grossman traz a Madona para seu lugar e tempo, entre a Alemanha nazista e a União Soviética stalinista. É de arrepiar.
Às 8 horas da manhã de uma quinta-feira chuvosa que não prometia nada de especial, o texto arrancou dos meus olhos lágrimas sentidas.