Colocado assim parece óbvio, mas sempre me perguntei por que não poderíamos aproveitar o efeito placebo nos tratamentos convencionais…
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São Paulo, domingo, 1º de abril de 2012
HÉLIO SCHWARTSMAN
Do direito de furar
SÃO PAULO - Para a Justiça, só médicos têm o direito de praticar acupuntura. Receio que nossos magistrados tenham sido afoitos. Antes de aplicar o princípio da reserva de mercado, teria sido oportuno estabelecer se a milenar técnica chinesa tem fundamento científico. E, à luz das melhores evidências disponíveis, a resposta é "provavelmente não".
Como mostram Simon Singh e Edzard Ernst em seu instrutivo "Trick or Treatment", quando ressurgiu com força no Ocidente, nos anos 70, a acupuntura parecia capaz de fazer milagres. Era recomendada para tudo, de daltonismo a AVC. A própria Organização Mundial da Saúde publicou, em 1979 e de novo em 2003, revisões bastante favoráveis à técnica, que foi incorporada como parte do arsenal terapêutico por diversos governos e associações médicas.
Profissionais mais céticos, entretanto, insistiram em que a acupuntura deveria ser investigada com mais rigor. E trabalhos de melhor qualidade, como uma série de metanálises patrocinadas pela rede Cochrane, reduziram o escopo de aplicações. Mostraram que ela talvez servisse para tratar dores e náuseas, descartando quase todos os outros usos.
O golpe mais duro veio depois que os estudos passaram a incorporar controles nos quais o paciente crê receber tratamento, mas a acupuntura é falsa (aplicada em pontos "errados" ou com agulhas telescópicas que nem furam a pele). Nesses trabalhos, o benefício da acupuntura em dores e náuseas fica indistinguível do efeito placebo, que é quando o paciente melhora por simples sugestão.
Isso nos leva a uma questão ainda mais complicada. Já que o efeito placebo é real, por que não aproveitá-lo, trazendo-o para a prática médica? Pílulas de farinha e falsas agulhadas raramente provocam reações adversas e são baratas. A objeção é de ordem ética. Todo placebo envolve algum grau de enganação. No longo prazo, erode-se a confiança nos profissionais e na própria medicina.
URL: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/34562-do-direito-de-furar.shtml