quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Dilma no limite



São Paulo, quarta-feira, 27 de outubro de 2010


FERNANDO DE BARROS E SILVA

Dilma no limite

SÃO PAULO - "Vocês podem ter certeza, eu estou preparada para ser a primeira mulher presidente do Brasil". Foram as últimas palavras pronunciadas por Dilma Rousseff no debate da TV Record, já no início da madrugada de ontem. Quando um evento como esse chega ao fim e, mais uma vez, ela parece ter sobrevivido, seus assessores só podem comemorar aliviados -ufa!
O fato é que Dilma não inspira certeza sobre nada. É aflitivo vê-la na TV. Não apenas pelo aspecto rombudo e robótico da sua figura. A aflição de Dilma está estampada no ritmo da sua fala, ao mesmo tempo lenta e acelerada, feita de arranques e soluços, de frases decoradas mas quase sempre truncadas.
Como o debate foi na emissora de Edir Macedo, falar em Deus pegava especialmente bem. E Dilma falou, mais de uma vez: "No que depender do meu governo se Deus quiser" -assim, sem pausas, sem vírgulas, sem ênfases, como alguém que se desincumbe de um fardo.
Dilma passa a impressão de estar no limite das suas capacidades, a um triz de um curto-circuito. Isso apesar da vantagem relativamente folgada que abriu sobre José Serra -56% a 44%, segundo o Datafolha.
Não se trata, certamente, de uma pessoa despreparada. Dilma tem substância. Mas não é, nunca foi, uma pessoa preparada para chegar à Presidência. É uma neófita. Nem de longe reúne os recursos pessoais para o exercício da função de seus antecessores -Lula ou FHC.
Sua candidatura representa a continuidade de um projeto, mas é também um capricho de Lula. Ninguém sabe como ela vai arbitrar conflitos, como irá gerir a máquina do Estado ou como se sairá enquanto líder política. A rigor, ninguém sabe qual a turma que ela pretende atrair para perto de si no poder.
A revelação de que Erenice Guerra fez da Casa Civil um centro de arte em família é um péssimo cartão de visitas para quem patrocinou a ascensão da ex-ministra. Sobretudo quando se trata de uma candidata também aclamada no escuro.

URL: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz2710201003.htm

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Religião e política

Quem argumenta exatamente a mesma coisa que Hélio Schwartsman abaixo é Tony Blair, que após sair do governo britânico fundou a Tony Blair Faith Foundation, e que declarou o seguinte em seu livro de memórias:

I'm really and always have been in a way more interested in religion than politics.

(O vídeo que indico acima é excelente por muitos outros motivos além da discussão sobre religião e política. Recomendo entusiasticamente!)

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São Paulo, quinta-feira, 14 de outubro de 2010

HÉLIO SCHWARTSMAN

Liturgia de campanha

SÃO PAULO - Não deixa de ser um pequeno milagre: mesmo sem ter desempenhado papel determinante na votação presidencial, a religião ganhou momento e passou a definir a liturgia da campanha.
É conveniente para todos. Padres e pastores posam de grandes eleitores, Dilma abafa um pouco o caso Erenice e Serra pode continuar sonhando com o advento sobrenatural que subtrairá votos à petista.
Institucionalmente, porém, a transubstanciação da campanha em concurso de coroinhas é algo a lamentar. Não que religiosos não devam opinar. Na democracia, clérigos são livres para pregar o que bem desejarem e eleitores só devem satisfações do voto a suas consciências. Na verdade, seria impossível pedir às pessoas que não levem em conta seus valores (às vezes amparados em ensinamentos teológicos) na hora de fazer suas escolhas.
As dificuldades surgem quando a religião se torna a justificativa para posições inegociáveis. Ao pautar a política por uma lógica espiritual, que opera com conceitos como o de pecado, o discurso religioso introduz absolutos morais em questões que não podem ser tratadas de forma dogmática ou maniqueísta sem negar a própria política.
Enquanto uma lei positiva se justifica por sua racionalidade, comporta gradações e pode ser objeto de negociação, o pecado, por ter sido definido por uma autoridade incontestável, vem na forma de pacotes inegociáveis. A própria lei de aborto, de 1940, é um exemplo. Ela veda o procedimento, mas prevê exceções (risco de vida para a mãe e estupro) que não são admissíveis na lógica puramente religiosa.
Utilizar absolutos na política — religiosos ou ideológicos — é ruim porque eles a descaracterizam como instância de mediação de conflitos. O remédio contra isso, como já intuíram no século 18 os "philosophes" do Iluminismo francês e os "founding fathers" dos EUA, é a separação Estado-igreja. É essa linha que fica meio borrada com a introdução da fé na corrida eleitoral.

URL: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz1410201003.htm